A reanálise das cotas: uma análise da decisão da suprema corte americana e a declaração do ministro do Trabalho

Há poucos dias atrás, o governo divulgou que no concurso para "Auditor Fiscal do Trabalho" haverá um expressivo aumento nas cotas raciais, além das vagas para PCD e pessoas transexuais , veja-se:

"O governo Lula vai reservar cotas para indígenas e transexuais no próximo concurso que fará para selecionar 900 auditores fiscais do trabalho no país.

De acordo com o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, 2% do total de vagas serão destinadas aos indígenas. E outros 2%, para pessoas trans.

Hoje, a lei só exige 5% de cotas para pessoas com deficiência (PcD), e 20% para negros.

Nestes dois casos, o ministério também vai inovar: o percentual de vagas reservadas para PcDs será de 6%. Já as reservas para negros vão saltar para 45%." (Fonte: Diário do Comércio. Disponível em: 

https://diariodocomercio.com.br/politica/governo-lula-reservara-cota-para-trans-em-concurso-publico/#gref. Acesso em 01 jul 23.

Em contrapartida, mais ou menos no mesmo tempo, tivemos a decisão da suprema corte americana. 

Para ambientar, vou recortar e me utilizar da notícia do portal JOTA encabeçado pela jornalista Carolina Ingizza (Fonte: https://www.jota.info/justica/eua-suprema-corte-determina-fim-das-acoes-afirmativas-em-universidades-30062023. acessado em 01 jul 23).

Precedente anterior: "O principal precedente para as ações afirmativas americanas era o caso Grutter vs Bollinger, de 2003, no qual a Suprema Corte permitiu que os programas de admissão universitária usassem critérios raciais na seleção. Na época, o argumento era que a promoção da diversidade era do interesse do governo norte-americano".

Tese inicial: "Os dois casos contra as universidades [Harvard e da Carolina do Norte]  foram movidos pela organização Students for Fair Admissions. O grupo foi fundado pelo ativista conservador Edward Blum e defende que os critérios raciais sejam abolidos para o ingresso em universidades americanas. Eles argumentam que a prática beneficia estudantes negros e latinos em detrimentos de outros grupos étnicos, como os asiáticos".

Julgamento: "O presidente da Corte, John Roberts. Jr, que votou pela inconstitucionalidade, argumentou que os alunos devem ser tratados com base nas suas experiências enquanto indivíduos e não com base na sua raça. 'Ambos os programas [de seleção das universidades] não têm objetivos suficientemente específicos e mensuráveis que justifiquem o uso da raça e inevitavelmente usam critérios raciais de forma negativa', escreveu o juiz".

Essa discrepância nas decisões da Suprema Corte Americana e a declaração do ministro brasileiro nos leva a refletir sobre vários aspectos:

a) A desigualdade é permitida? A Constituição Federal afirma categoricamente que a lei não poderá fazer distinções de qualquer natureza entre os indivíduos "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza..." (art. 5º); além disso, quando diz respeito aos atos da Administração Pública é dito que seus atos devem ser fincados no princípio da impessoalidade (art. 37). 

Portanto, em tese, uma norma que estabelece cotas raciais estaria ferindo ambos os princípios constitucionais. Todavia, tem-se interpretado a Constituição a partir da máxima de que o termo "todos são iguais perante a lei" está mais ligado ao princípio da isonomia do que o princípio da igualdade, propriamente dita.

Isso significa dizer que um critério desigual pode ser aplicado caso pessoas estejam em situação desigual, trazendo a máxima milenar de: "tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual à medida de sua desigualdade". 

Assim a própria Constituição (art. 37, inciso VIII) garante as vagas para pessoas com deficiência, o que foi regulamentado (§2º, art. 5º da Lei nº 8.112/90).

Ato contínuo, a Lei nº 12.711/2012, estabeleceu que as universidades públicas devem reservar 50% das vagas para egressos do sistema público de ensino (já compreendendo que nosso ensino público é ruim mesmo e, por incapacidade administrativa, a lei dá essa compensação como uma espécie de reparação civil).

Por sua vez, a Lei 12.990/2014, que terminará sua vigência em 2024 (art. 6º), estabeleceu cotas de 20% para negros em concursos públicos da administração federal. 

Não existem leis que definem nada a esse respeito para pessoas transexuais.

b) Civil law. Como vimos, as chamadas "ações afirmativas" são todas oriundas de leis em sentido estrito, isto é, leis que passaram pelo crivo de ambas casas do legislativo e depois passaram para a sanção presidencial; cumprindo com os ditames do sistema jurídico vigente no Brasil, o "Civil Law". Diferente do que ocorria nos EUA, onde todo o trabalho foi feito em cima de decisões judiciais precedentes - sistema que conhecemos chamar de Common Law.

Mas porque a necessidade de estabelecimento de uma lei? Como vimos acima, a regra é pela igualdade sem nenhuma distinção; mas a isonomia permite uma exceção "à medida de sua desigualdade"; o termo "à medida" é semelhante à dizer "na justiça" ou "no caimento adequado", de modo que:

  • Se for além do que foi considerado "à medida" na lei, há uma desigualdade injusta e, portanto, inconstitucional;
  • Se for aquém, a comunidade segue prejudicada e, portanto, também inconstitucional.

Perceba-se que esse foi o argumento que culminou na decisão da Suprema Corte americana: não é justo que negros e latinos sejam privilegiados e, por exemplo, os asiáticos não. Dai se compreender que cada país vai reconhecer seus aflitos: cada nação deve analisar quem, dentre seus membros, acabou ficando para trás e precisa de ajuda.

Porém, questiona-se: Quem dá essa medida? Quem é capaz de dizer em que grau de tratamento diferenciado vamos considerar como justo (à medida)? 

A resposta é óbvia: a própria lei. Já que ninguém pode ser compelido a fazer algo senão em virtude de lei, já que a lei tem por dever tratar todos sem distinção alguma, já que a administração pública só pode fazer o que está previsto em lei, apenas a lei pode dizer qual a medida justa.

Mas os questionamentos continuam: Quem poderia dizer quais são os beneficiários do tratamento diferenciado? O governo temporário? Quem são os personagens que a sociedade admite?

Nesse caso, entendo, que cabe a lei estabelecer tão somente a porcentagem das cotas, mas os beneficiários jamais poderiam ser escolhidos por deliberação infraconstitucional: pois se é a Constituição que manda tratar todos iguais, apenas a Constituição poderia dizer quais as exceções para essa regra, como fez com o caso das pessoas com deficiência, veja-se:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão. (grifos nossos)

A prova é tanta que o tratamento diferenciado às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte também teve que ser determinada por mandamento constitucional e regulamentada por lei posterior:

Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. (grifos nossos)

Portanto, o governo ao estabelecer cotas nos limites que anunciou - muito maiores do que a lei estabelece e privilegiando personagens não previstos na lei (e muito menos na Constituição) - está utilizando e manipulando a comunidade com fins partidários de modo inconstitucional.

Na democracia não se pode "queimar etapas", caso considere que as porcentagens atuais são aquém da justiça (medida), deve procurar, no mínimo, os meios adequados para tanto: pelo menos buscar alterar a lei para aumentar esse número e propor emenda constitucional para adicionar novos personagens que a sociedade irá considerar tratar de modo diferenciado.

Infelizmente, sob o argumento de se estar fazendo justiça social, vemos crescer ilimitadamente o poder do Estado sobre os indivíduos; a cada dia o governo tem mostrado que pode tomar decisões (hiper)intervencionistas sobre as empresas e sobre os indivíduos. Por sua vez, as instituições democráticas, talvez por concordarem com o conteúdo moral dessas decisões, estão negligenciando que isto é semelhante a um animal que, antes de entrar definitivamente no lago, toca levemente na água para se sentir confiante.



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